Pivô Satélite / Uma conversa com os artistas da 3ª edição do projeto

A plataforma digital Pivô Satélite, desde 2020, apresenta trabalhos de artistas selecionados por um grupo de três jovens curadores convidados. Na dinâmica, cada curador indica quatro artistas para construir uma proposta individual que fica exposta pelo período de um mês de forma digital e a seleção leva em consideração além da qualidade da pesquisa artística, aspectos como diversidade de gênero, étnico-racial, regionalidade, contexto social e cultural.
Com objetivo de contribuir para a criação de uma rede de apoio à comunidade artística, a iniciativa convida os artistas a apresentarem projetos em caráter experimental que podem assumir diferentes formatos, temáticas e suportes. A 3ª edição, intitulada “Sexo, Mentiras e Videotape” estreia em 9 de julho e tem curadoria de Raphael Fonseca. Entrevistamos Eduardo Montelli, Laura Fraiz, New Memeseum e Ventura Profana, os quatro artistas participantes da edição para saber, em primeira mão, o que esperar dos projetos apresentados.

Eduardo Montelli (Porto Alegre / RS, 1989)
Artista visual. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Em sua pesquisa artística e teórica, investiga a influência de documentações, narrativas e outras formas de “inscrição de si” no modo como as pessoas vivem e como são reconhecidas socialmente. Participa de exposições e de outras atividades de arte desde 2009, entre as principais estão a 5ª Edição do Prêmio Energias na Arte, no Instituto Tomie Ohtake/SP; Filmes e Vídeos de Artistas, na Fundação Iberê Camargo /RS; Abre Alas 10, na galeria A Gentil Carioca/RJ; e 65º Salão de Abril, no Centro Cultural Banco do Nordeste/CE, no qual seu vídeo “Fundos” foi premiado. Em 2019 apresentou a exposição individual “Como faremos para desaparecer”, com curadoria de Charlene Cabral, na galeria da Fundação ECARTA, em Porto Alegre/RS. Em 2020 foi um dos artistas indicados ao Prêmio PIPA.
Eduardo Montelli. Frame we are making art, 2019.
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A articulação dos objetos do cotidiano e a retirada dos mesmos desse contexto guia um tanto a sua produção. Como se dá a sua relação com tais objetos? Como você entende o deslocamento desses do seu lugar comum?
[EM]
Comecei a usar alguns objetos cotidianos logo no início das minhas experimentações artísticas. Esse processo surgiu espontaneamente, muito por causa dos próprios objetos, do modo como nos relacionamos com eles, dos sentidos que criamos para essas relações. Primeiro, escolhi (intuitivamente) tratar o ambiente doméstico, a casa, como um objeto de pensamento e ação de arte. Depois passei a observar os “conteúdos” desse ambiente. Dentro do terreno onde minha família mora há mais de 50 anos existe um local que chamamos de “galpão”, um tipo de depósito entulhado com móveis e outros objetos domésticos que não utilizamos mais, mas que não queremos doar ou jogar no lixo, pois podemos precisar em algum momento do futuro. Esses objetos se acumulam, atravessam gerações, e de repente me vejo dentro do galpão desejando usá-los novamente, mas dessa vez com uma intenção artística. Penso que o “galpão” é uma espécie de escultura ou instalação coletiva construída desinteressadamente por minha família, e gosto de imaginar uma grande obra em expansão formada por todos os “galpões” de todas as famílias da rua, do bairro, da cidade. Enfim, essa prática de guardar objetos é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva. É íntima, mas também compartilhada por muita gente, é cultural. Não me interesso tanto pelos deslocamentos desses objetos para os ambientes da arte, como os ready mades. Eu me interesso mais pela presença e sentido desses objetos no próprio cotidiano, fora do enquadramento oficial da arte. Por isso, quando faço uma exposição, trabalho mais com documentações do que com os objetos mesmo. Através de performances, fotografias, vídeos, gifs e textos produzidos em minha vivência cotidiana nesses locais e com esses objetos, procuro fazer um tipo de obra documental que aborda justamente essa relação do sujeito com o seu entorno, dessa tentativa pequena e frágil de observar e encontrar sentidos para um mundo tão grande, mutante e cheio de coisas. Cada vez que algum desses objetos aparece em algum processo artístico, penso que estou encontrando um novo uso para ele, mais especificamente, um uso que dialoga com ideias de “arte”. Esse gesto se liga a todo um pensamento sobre a possibilidade do cotidiano ser vivido como experiência de arte, que é perfeitamente resumido na frase “o museu é o mundo”, de Oiticica. Por fim, percebi que a lógica do acúmulo e da constante tentativa de encontrar novos usos e novas composições para os objetos, de certa forma, funciona como uma metodologia em meu trabalho de arte, pois as imagens produzidas também se tornam objetos guardados. No caso, são arquivos digitais acumulados em HDs e nuvens, a partir dos quais posso montar exposições em galerias, por exemplo.
[TT]
Sua produção fala muito sobre a presença e dissolução do corpo, aproximando-se do entendimento do mesmo enquanto uma matéria que opera no cotidiano. Conte um pouco sobre sua pesquisa sobre o corpo e seus desdobramentos. [EM] O “corpo” também é um “objeto” que me interessa desde os primeiros trabalhos. Em 2008, inspirado pela descoberta das obras de Diane Arbus, Robert Mapplethorpe e Nan Goldin, que retratam corpos fora dos padrões normativos da sociedade, especialmente em questões de gênero, fiz algumas fotografias de minha mãe, que é lésbica e tem uma aparência lida socialmente como “masculina”. Nesse mesmo ano, após assistir ao filme  “O Lamento da Imperatriz”, de Pina Bausch, comecei a fazer performances para fotografia e vídeo, geralmente no pátio de casa. Então, junto com a questão dos “objetos” surge um pensamento sobre o corpo, sobre o meu próprio corpo e sobre o corpo do outro. Um corpo que também é objeto acumulado no mundo, um corpo que também é imagem projetada no mundo. Penso o “corpo” (objeto ou imagem) como uma construção permanente que é orientada por modelos normativos. Grande parte das imagens que produzi usando meu corpo (ou o corpo de outras pessoas) são como comentários sobre esses modelos, sobre seus efeitos em nossas vidas, sobre seus modos de reprodução e subversão. Entendo que a “plasticidade” dos corpos, sua capacidade de ser “modelado” por gestos e imagens, por mais que sirva à normatividade, também abre espaço para criação. A figura da “mãe” aparece em meu trabalho como reconhecimento dos corpos que já estão no mundo antes de nós, e através dos quais nossa existência se torna possível.  O fato de minha mãe se  identificar como “lésbica” e “masculina” traz algumas questões a mais nesse sentido, sua participação em meu processo artístico vai além da iniciação ao pensamento sobre o corpo, pois levanta problematizações acerca das normas sociais de sexualidade, gênero e parentalidade. Acredito que há certa ideia de “desajuste” do corpo em relação ao mundo social em meu trabalho, mas ao mesmo tempo há espaço de invenção e experimentação, de liberdade, desejo de criar vínculos com outros corpos, para além das imagens. Busco pensar de maneira não dualista, não binária, tentando entender as multiplicidades, as complexidades e principalmente os movimentos das transformações de um corpo no mundo. Fiz um vídeo chamado “Chiclete”, em 2020, no qual meu rosto aparece distorcido e pintado de rosa, sugerindo a forma de uma goma de mascar descartada em um espaço vazio e escuro. Nesse vídeo, a imagem do “corpo” aparece isolada, reduzida, deformada e coisificada. Em um conjunto de trabalhos composto por uma série que vai desde os primeiros retratos de minha mãe até o “Chiclete”, vejo uma espécie de narrativa de formação (ou deformação) que segue aberta. Mais do que revelar uma história de vida exemplar, essa narrativa fala sobre os altos e baixos da experiência do corpo sobre o mundo, de um corpo que projeta objetos e imagens sobre um mundo.
Eduardo Montelli. Minha mãe, fotografia, 2008.
[TT]
Conte um pouco sobre suas ideias a serem desenvolvidas no projeto do Pivô Satélite, quais são seus planos? [EM] Estou pensando no site do Pivô Satélite como uma sala vazia que fui convidado para ocupar. Pretendo trabalhar nessa sala durante todo o tempo de exibição do projeto, fazendo postagens diárias. Quero fazer algo parecido com as colagens do artista alemão Kurt Schwitters, especialmente com as fotografias que restaram da obra “Merzbau”, destruída na Segunda Guerra. “Merz” é uma palavra que o artista encontrou em um pedaço rasgado de jornal, fragmento do nome “Commerzbank”. Assim, “Merzbau” significa algo como “construção Merz”. Durante mais de 20 anos, Schwitters fez colagens  sobre as paredes do apartamento que vivia com sua família, usando restos de textos, imagens e objetos encontrados pelas ruas. Essa grande colagem instalativa em ambiente doméstico era a “Merzbau”, ou a “Catedral da Miséria Erótica”, como também era conhecida. É interessante observar que a “Merzbau” é composta por volumes, reentrâncias, subdivisões, recantos, enfim, uma série de engenhosas experimentações de formas de espacialização. Eu quero usar meu arquivo de imagens digitais como se fosse a coleção de fragmentos do cotidiano do Schwitters e com essas imagens quero fazer composições de “módulos”, em formato de GIFs verticais (padrão de tela de celular), inspiradas na espacialização experimental da “Merzbau”. Penso que cada novo “módulo.gif” postado é uma ocupação de um pedaço do “espaço” do Pivô Satélite. Os módulos serão postados um por cima do outro, como se fossem andares ou salas de um edifício. No último dia de trabalho, teremos uma “construção” de GIFs ocupando bastante espaço, que poderá ser vista  por inteiro através do scrolling da página. Eu já tenho o título: “Só sei me transformar, apenas não sei em que”.
Eduardo Montelli. Frame Chiclete, 2020.
Eduardo Montelli. Frame Fundos, 2013.
Laura Fraiz (São Paulo / SP, 1996)
É uma artista brasileira e venezuelana que trabalha com vídeo, performance, desenho, pintura, som e escrita. Em sua produção, cria narrativas confessionais e autobiográficas, expondo memórias, segredos e devaneios para investigar relações como realidade e ficção, violência e desejo, controle e desobediência. Graduada em Artes Visuais pela Universidade de Brasília, expôs seu trabalho em diversas cidades do Brasil, assim como na Suíça e em Singapura. Em 2018, foi laureada com o Prêmio Transborda Brasília, com os vídeos Mordente (2017) e Inside My Baby (2006).
Laura Fraiz. Frame vídeo No Es Una Novela.
[TT]
A presença do seu corpo é parte significante da sua pesquisa, você parece se colocar entre a realidade e a ficção na criação do seu trabalho. Como se dá a criação de narrativas a partir da sua imagem? Como você enxerga a questão da identidade nesse contexto? Em que medida a autobiografia aparece?
[LF]
Minha pesquisa acontece na intersecção entre esta realidade e a minha telenovela particular. Ando pelas ruas devaneando com cenas dramáticas em que sou a atriz principal; existo no mundo como se estivesse sendo filmada. Meu desejo de aparecer e inserir meu corpo nos trabalhos vem da alternância entre eu e uma outra – tal hora vilã, tal hora mocinha. Encontrei na videoarte um lugar em que essas forças predominam e fazem acontecer de acordo com seus desejos. Me filmo para criar atestados de verdade dessa novela, transpondo a fantasia para uma realidade material, possível de compartilhar. Preciso que não exista só na minha cabeça. Meu trabalho não é completamente autobiográfico, mas autoficcional. Um emaranhado de verdades e mentiras articulado através de imagens justapostas.
[TT]
Ainda sobre o corpo, temas como violência, opressão (que também é um tipo de violência) e morte são presentes na sua produção, explícitos ou não, às vezes em tom de ironia. Vejo o modo como você articula esses temas como uma das grandes potências do seu trabalho. Como se dá na prática a concepção da ideia até a realização?
[LF]
Sempre parto de um incômodo concreto que me atravessa naquele momento. Pode ser o medo de morrer e ser esquecida, a raiva que sinto de homens nojentos ou uma dor de cotovelo triste. Fazer meus trabalhos é o jeito que eu uso pra dar o troco,  para transmutar sentimentos difíceis, dolorosos e contraditórios que me perturbam. Me permito extrapolar no melodrama e realizar meus delírios de vingança, poder, fama e outras coisas que parecem impossíveis. Ao longo do processo, surgem visões de imagens satisfatórias que quero ver no mundo. Pouco a pouco, essas visões vão tomando forma e adquirindo textura, som e ritmo. Sempre que faço um vídeo, me preocupo com o que quero transmitir, conceitual e esteticamente, mas nunca sei bem onde quero chegar, até que chego lá.
Laura Fraiz. Frame vídeo No Es Una Novela.
[TT]
Conte um pouco sobre suas ideias a serem desenvolvidas no projeto do Pivô Satélite, quais são seus planos?  
[LF]
Para o Pivô Satélite, fiz um vídeo chamado No Es Una Novela, dividido em três episódios. Como em uma novela, cada um acaba no clímax, para que dê vontade de ver o que vai acontecer depois.  Esse trabalho conta a história de quando fui seguida e filmada por um homem, mas consegui roubar a câmera dele e recuperar as filmagens que ele fez de mim. São elas que aparecem no vídeo, junto com uma narração que revela o percurso interno que eu fiz durante esse processo, que me levou do terror ao fascínio. Do choque inicial por essa invasão tão violenta até o desejo latente de expor essas imagens, talvez como forma de ter controle sobre elas.
New Memeseum (2020)
O @newmemeseum foi criado no final de julho de 2020. É um perfil anônimo do Instagram que aborda, com humor e ironia, situações da arte e do campo cultural brasileiro.
Divulgação: Cortesia New Memeseum.
[TT]
Entendendo o humor e a crítica como catalisadores da produção do New Memeseum, como vocês enxergam o limite entre ficção e realidade? Qual seria o papel da ironia nesse limite (caso ele exista)?
[NM]
A nosso ver, os limites entre realidade e ficção são muito tênues, principalmente no campo da arte. Nós preferimos pensar em formas de contar histórias e, nessas versões, não existe muito bem uma separação entre opostos. Possivelmente, nem sejam opostos. Se pensarmos nas histórias da arte, aqueles que as escrevem são pessoas. E pessoas fazem opções: incluem determinadas produções e deixam de fora outras. Suas decisões são amparadas na “realidade” que conseguem observar – que, para outra pessoa, pode ser entendida como ficção ou engano. Nenhum recorte narrativo prescinde de seu autor, de seu ponto de vista, das questões da própria escrita (porque escrever histórias também implica escolhas estéticas e estilísticas) e de uma observação pessoal do próprio contexto. A arte está debatendo a reescrita da história da arte – torná-la história da arte, feita por outros autores, a partir de outros lugares de fala. No entanto, acreditamos que seria interessante repensar, também, a forma como essas novas narrativas são, e serão, escritas, porque certos vícios tendem a se repetir, como, por exemplo, a recorrência da figura do herói. Heróis estão sendo derrubados para serem substituídos por outros. Uma narrativa que tem o herói como protagonista sempre pressupõe a guerra e, consequentemente, o colonialismo. Ursula K. Le Guin, ao referir-se à pré-história em A ficção como uma cesta: uma teoria, comenta que: “a história não tem somente Ação, ela tem um Herói. Os heróis são poderosos. Antes que você possa perceber, os homens e as mulheres no campo de aveia silvestre, bem como suas crianças, e as habilidades dos criadores, e os pensamentos dos que pensam, e as músicas dos que cantam, tudo isso se torna parte do conto do Herói e fica a serviço desse tipo de narrativa. Mas essa não é a história deles. É a história do Herói”. Talvez, a historiografia da arte esteja desde sempre trabalhando a serviço desse tipo de narrativa. É muito difícil fugir disso, porque a maioria das narrativas ocidentais – dos livros às séries e filmes – estruturam-se nessa dinâmica. Nesse sentido, nós tentamos pensar a ficção como uma cesta. Dentro desse recipiente não há hierarquia. Conforme vamos depositando coisas dentro, elas vão se misturando e tudo pode conviver junto. Assim como a arte, que não pode ser retirada do campo da vida para ser depositada sobre um pedestal. Ela está dentro dessa cesta, misturando-se com um monte de outras coisas. Como comenta Le Guin: “o Herói não fica bem nessa cesta. Ele precisa de um palco, de um pedestal ou de um pináculo. Você o coloca em uma cesta e ele parece um coelho, uma batata.”
[TT]
Ainda que a distinção entre alta e baixa cultura seja turva, como vocês se entendem dentro da hierarquia institucional? Imaginando um cenário utópico onde seria possível quebrar essa hierarquia, como vocês acham que o trabalho do New Memeseum se desenvolveria? [NM] Ainda não temos uma resposta para essa pergunta, porque nós procuramos trabalhar a partir do que nos é oferecido. Não costumamos trabalhar com o utópico, porque preferimos estar abertos às transformações que possam ocorrer no meio do caminho. Sendo assim, o trabalho do perfil pode assumir várias formas e se desenvolver de muitas maneiras diferentes.
Divulgação: Cortesia New Memeseum.
[TT]
Conte um pouco sobre suas ideias a serem desenvolvidas no projeto do Pivô Satélite, quais são seus planos?
[NM]
Pavão misterioso/ Pássaro formoso/ Tudo é mistério/ Nesse teu voar/ Ai se eu corresse assim/ Tantos céus assim/ Muita história/ Eu tinha pra contar/ Pavão misterioso/ Pássaro formoso/ Tudo é mistério/ Nesse teu voar/ Ai se eu corresse assim/ Tantos céus assim/ Muita história/ Eu tinha pra contar/ Pavão misterioso/ Nessa cauda/ Aberta em leque/ Me guarda moleque/ De eterno brincar/ Me poupa do vexame/ De morrer tão moço/ Muita coisa ainda/ Quero olhar/ Pavão misterioso/ Pássaro formoso/ Tudo é mistério/ Nesse teu voar/ Ai se eu corresse assim/ Tantos céus assim/ Muita história/ Eu tinha pra contar/ Pavão misterioso/ Meu pássaro formoso/ No escuro…
Ventura Profana (Salvador / BA, 1993)
Filha das entranhas misteriosas da mãe Bahia, d’onde artérias de águas vivas sustentam em fé, abunda. Ventura Profana profetiza multiplicação e abundante vida negra, indígena e travesti. Rompe a bruma: erótica, atômica, tomando vermelho como religião. Doutrinada em templos batistas, é pastora missionária, cantora evangelista, escritora, compositora e artista visual, cuja prática está enraizada na pesquisa das implicações e metodologias do deuteronomismo no Brasil e no exterior, através da difusão das igrejas neopentecostais. O óleo de margaridas, jibóias e reginas desce possante pelas veredas até inunda-la em desejo: unção. Louva, como o cravar de um punhal lambido de cerol e ferrugem em corações fariseus.
Ventura Profana. Foto Mirella Ferreira.
TT
Sua produção escancara o abismo entre você e a igreja tradicional, assim como as inúmeras semelhanças que te unem ao evangelho. Quais são os elementos desse abismo que você acha que potencializam o seu trabalho? Da mesma forma, quais são as semelhanças que te impulsionam?
VP
Acho difícil falar em uma igreja tradicional, sabendo da vastidão e complexidade nas práticas litúrgicas, eclesiásticas e epistemológicas que compõem e caracterizam uma série de denominações cristãs que poderiam ser lidas como tradicionais, mas que certamente não são homogêneas. O que denoto é o abismo entre a arte – seu sistema e mercado – perante à imensidão e profundidade dos processos e exercícios evangelicalistas no decorrer da história, até aqui. Processos tais que me possibilitaram experimentar o fazer artístico desde a infância, seja cantando, atuando ou criando imagens projetadas para a congregação. A mim, esse abismo mais se parece a um muro, construído e expandido tanto pelas igrejas em relação à arte contemporânea, quanto pelo sistema artístico tradicional com relação aos saberes~fazeres congregacionais. Diante disso, o que minha produção sublinha é o abismo entre meu corpo negro transmutado e o governo necropolítico do senhor dos senhores – principal fornecedor, entusiasta e beneficiário do projeto de edificação e cristalização deste muro que menciono e tantos outros. O evangelho é a ginga que me possibilita viver profeticamente abundante mesmo que perseguida e naturalizada num vale imensurável de incontáveis ossos secos, feita peregrina no deserto tanto pela indústria de arte, quanto pelos espaços convencionais das religiões abraâmicas. Este evangelho é a contradição – espalhar, crer e semear boas novas, mesmo no tempo do cativeiro.
[TT]
A ideia de roubo e morte estão muito evidentes na sua produção, você vê uma relação entre elas? Qual seria? [VP] É curioso, pois pressuponho que o trabalho se estabeleça fervorosamente sobre o que jamais poderá ser roubado ou esquecido; ainda que a história e a realidade, prescritas na colonial linearidade adestradoras, conspirem e acumulem sobre ombros como os meus, somente o desejo extorsivo da aniquilação; em minha poética o que resplandece é a vida que invoco e proclamo.
Ventura Profana. Foto Mirella Ferreira.
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Conte um pouco sobre suas ideias a serem desenvolvidas no projeto do Pivô Satélite, quais são seus planos?
[VP]
Alimentadas pelo fato de que nossa igreja em espírito já possui magnitude, poder e glória como a de uma nação forte e unida, contudo ainda jornadeadas na tarefa árdua de edificação do nosso templo, foi pelo precioso empenho de todas as membras de nossa congregação, que conseguimos alicerçar nossa fé, levantar paredes e colocar a pedra angular – que é Jesus. Em breve, depois de uma intensa campanha de arrecadação de fundos e do apoio do Pivô Satélite, inauguramos a sede da Congregação Pentecostal Missão de Vida.

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