Entrevista com Rebecca Sharp e Tadáskía

Para a 7ª edição do projeto Caixa de Pandora, as artistas convidadas Rebecca Sharp e Tadáskía, partiram de uma imersão na Coleção Ivani e Jorge Yunes para criar obras inéditas que estão expostas em diálogo com o acervo até dezembro de 2022. O projeto tem curadoria de Germano Dushá e aborda temas que são latentes na sociedade e se relacionam com a pesquisa artística das convidadas.

Rebecca Sharp. Caixa de Pandora, 2022 © Opoente Filmes
[KURA] O projeto de Caixa de Pandora convida artistas contemporâneos para criarem produções inéditas a partir de uma imersão na CIJY. Os trabalhos apresentados partiram de uma relação com quais obras e/ou objetos? Como obras de diferentes contextos podem coexistir em harmonia em um mesmo espaço?
[REBECCA SHARP] Meu trabalho para a Caixa de Pandora partiu do histórico familiar que permitiu que tal coleção se formasse ao longo de décadas de colecionismo. Foquei também no aspecto histórico das rotas da seda que permitiram que a arte fosse levada e trazida da Ásia até a Europa e então adiante. Busquei, sobretudo, referências em obras asiáticas e africanas porque representam um estudo pessoal que desenvolvi enquanto técnica, artesania e potencial energético. Ao meu ver, artes de diferentes tempos podem intensificar a relação entre elas e trazer uma mensagem nova. Um grande exemplo é o quadro de Jenna Gribbon na Frick Collection em NY em 2022, que é composta majoritariamente por pinturas de homens e sobre homens - quase que à sombra do patriarcado. Achei a aquisição da obra dela dentro daquele espaço o ato mais poderoso artístico em muito tempo. A Caixa de Pandora atua de maneira parecida - quebra, constrói e revela algo novo. Artistas puxam de lados diferentes suas mensagens e ações, como disse Willem De Kooning quando a NY School foi criticada: “O que eles acham que somos, um time de baseball?”. Arte não é time com um propósito, é mais pólen ou circuitos subterrâneos fungais, que criam variedade auto inteligente e para sempre diversa.
[TADÁSKÍA] Eu chamo toda a minha participação no projeto de Abdução, que inclui um vídeo, também intitulado dessa forma, em seis telas dispostas em diferentes cômodos; os desenhos em tecido; o arranjo com frutas e, por fim, a modificação da Sala Império. No vídeo, suporte que aparece pela primeira vez em uma edição da Caixa de Pandora, aparecem alguns objetos que integram a coleção e alguns cômodos da mansão. A relação criada com a coleção, por meio de Abdução, tende sempre ao mistério: não digo explicitamente o porquê duas moças negras são vistas apenas em duas noites nas cenas feitas nesse local, tampouco procuro informar o porquê a ave mística e sua sombra pairam de um lado para outro sobre as esculturas, quadros e tapeçarias; ou o porquê de um cuspe chegar ao chão e se transformar em desenho, lembrando-nos de Sankofa comumente vista em janelas do subúrbio do Rio de Janeiro. Podemos confiar, por outro lado, que mesmo as duas moças do vídeo não pertencendo àquela moradia e sua coleção, o sentido da entrada e da saída de ambas está inteiramente convocado por uma mudança que fornece suspense na harmonia da casa.
[K] Qual a importância de um projeto como a Caixa de Pandora no fomento da produção artística contemporânea?
[RS] Eu vejo a força do projeto Caixa de Pandora no diferencial do espaço de exibição. Permitir a visita de pessoas dentro da coleção e casa da família Yunes é, para mim, uma experiência que não se tem no Brasil. Este projeto atua na interseção do museu, galeria e acervo. Inserir artistas contemporâneos de diversas classes sociais, culturas, cores, gêneros livres e expressão, incentiva e fortalece a necessidade do ‘novo’ em forma de liberdade de viver e se expressar com dignidade. O futuro que vivemos agora, do ponto de vista do tempo das obras da coleção, seria absolutamente alienígena e reprimido com máximas consequências. Juntar estas duas linhas do tempo, passado rígido e futuro livre e responsável cria uma cura, uma sabedoria vinda em forma de exemplo e um alívio acima de tudo. Caixa de Pandora é como o ‘Hadron collider’ onde partículas de diferentes tempos e realidades experimentam uma colisão entre si e ‘quebram’ com a realidade “atual”, criando outra. Tenho certeza que todos participantes das obras do acervo, pintores, escultores, reis, rainhas e impérios se beneficiam disto através dos tempos.
[T] Acredito que bons fomentos à produção artística são importantes e bem-vindos sempre. A Caixa de Pandora é uma importante janela de articulação, desenvolvimento e divulgação artística. Quando fui convidada, sendo a primeira artista negra e trans até o momento, fiquei bastante empolgada em criar alguma composição, algum arranjo temporário no entorno dos objetos milenares. É surreal imaginar tantos séculos concentrados em um único lugar. Quando cheguei até a coleção Yunes lembrei de uma fase muito fantasiosa da minha infância: eu viajando nas histórias de bruxas, princesas e assombrações. Eu pequena acreditando que poderia voar além do bairro Santíssimo (RJ).
[K] Qual tem sido o objeto de pesquisa mais recente dentro de sua produção? Como ele pode ser visto nos trabalhos inéditos expostos na sétima edição do projeto Caixa de Pandora?
[RS] O trabalho de pesquisa foi baseado nos primeiros movimentos de obras de arte desde a Ásia até a Europa, que foi possibilitado pela abertura e construção de rotas, de ruas, de caminhos que atuaram como veias de conexão entre culturas trazendo e levando comidas, animais, especiarias, arte e pessoas. O mundo se abriu com a possibilidade de conversa e troca entre povos. Eu trouxe o mar como tema de separação e junção entre culturas (Africana e Brasileira), e como carregador de histórias, de crimes, de beleza, de poder, sofrimento e a capacidade de segurar este todo.
[T] Eu desenho desde criança e faço vídeo desde os 18 anos. Para Caixa de Pandora é a primeira vez que desenho com acrílica. E chamo de desenho e não de pintura mais por conta de um costume em desenhar em vários suportes do que qualquer outra situação, e isso que tenho feito pode também ser chamado de uma mistura entre uma coisa e outra. Aliás, já desenhei em outras ocasiões com esmalte de unha, maquiagem de modo geral (batom, blush, iluminador, lápis de olho etc) e recentemente fiz uma mistura de tinta óleo, carvão e azeite na parede da Sé galeria. A cor tem me interessado faz algum tempo, e o óleo na parede com azeite trouxe uma sensação de frescor, uma demora no ambiente. Com os dez desenhos na coleção, por outro lado, eu estava desejando a cor como também certa rapidez na secagem. Experimentando a variação dos minutos tal como nas cenas de Abdução que, sozinhas, apresentam temporalidades diferentes. Elas vão de quarenta segundos a quatro minutos - sendo esta a única cena mais longa. É a primeira vez que dirijo sozinha um trabalho visual com uma equipe de seis pessoas, realizando efeitos, trilha e edições. Já havia feito vídeos de muitas maneiras, e co-dirigido um documentário experimental em 2017. Mas situar além de duas telas como também decidir o vídeo (em sua exibição oficial) com som apenas na cena inicial e final também é novo. Movida pelos hiatos, na transição entre silêncio e música. Aliás, é novo também apresentar um arranjo com bambu e frutas que se renovam. Imaginando a transformação entre um arranjo pelo qual as frutas somem e aparecem vivas; sensíveis ao tempo e nunca apodrecidas, em momentos de abdução inespecífica.
Rebecca Sharp vive e trabalha entre os EUA e o Brasil e em seu processo poético-espiritual, combina práticas pictóricas e meditativas. Sua obra trata de uma variedade de planos astrais, mundanos e, atualmente, o encontro deles: mundos insólitos recobertos por abismos em matizes vívidos que convivem de modo vibrante.  Em 2018, participou da 33ª edição da Bienal de São Paulo. Em 2019, esteve em residência no renomado Instituto de Artes da Califórnia.
Rebecca Sharp © Divulgação
Tadáskía vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e São Paulo. É artista negra e trans, formada em Artes Visuais Licenciatura pela UERJ (2012-2016) e mestra em Educação pela UFRJ (2019-2021). Seu trabalho em desenho, fotografia, instalação e têxtil mobiliza paisagens inventadas e místicas. Através de sua prática, ela busca elaborar também as experiências imaginativas da diáspora negra, em torno de encontros familiares e estrangeiros.
Tadáskía © Lydia Metral

Compartilhar

Whatsapp |Telegram |Mail |Facebook |Twitter