
Curador Jacopo Crivelli Visconti e 59ª Bienal de Veneza
Jonathas Andrade representa o Brasil na 59ª Biennale di Venezia. O artista foi selecionado pelo curador Jacopo Crivelli Visconti e apresenta a instalação inédita “Com o coração saindo pela boca”. Kura conversou com exclusividade com Visconti, que compartilhou algumas reflexões sobre o trabalho de Andrade e o contexto desta primeira Biennale pós-pandemia.
“Nós dois estamos nos arriscando numa exposição bastante ousada. Acho que é isso que o momento demanda”.

Jacopo Crivelli Visconti, curador da 34a Bienal de São Paulo. 11/10/2019 © Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo
[KURA] As premissas curatoriais exploradas na 34a Bienal de São Paulo intitulada “Faz escuro, mas eu canto” (2021), de algum modo, influenciaram na escolha de Jonathas de Andrade como artista representante do Brasil nesta edição da Biennale di Venezia? Ou seja, apesar de Jonathas não ter participado da Bienal em São Paulo, você enxerga pontos em comum entre os dois projetos?
[Jacopo Crivelli Visconti] Sim. Acho que há uma proximidade entre o que a gente tentou fazer na 34a Bienal e o projeto de agora com o Jonathas. No sentido de que os dois são concebidos a partir de um olhar para o contexto atual, para o momento em que estamos vivendo no Brasil e no resto do mundo, de maneira cada vez mais dramática. Passamos pela pandemia e, quando parecia que isso caminhava para o fim, veio a guerra. É um período muito difícil… E já faz muito tempo. Estamos todos cansados. Então, acho que as duas propostas respondem a este momento e a maneira como a gente olha pra ele.
[K] Cecilia Alemani (curadora da 59a Biennale) visitou a última edição da Bienal de São Paulo no ano passado. Vocês tiveram a chance de conversar? E, dado o contexto da pandemia, o quão relevante para a cena artística local foi a presença dela no evento?
[JCV] Sim, eu estive com a Cecília e com o Massimiliano Gioni, que é o marido dela e também é curador. A gente teve uma boa conversa. Aliás, tivemos várias. Das quais, inclusive, surgiram coisas para a Bienal de Veneza. E sim, acho relevante que curadores internacionais visitem a Bienal no Brasil. Mas também acho importante lembrar que a Bienal de São Paulo e a 34a edição, talvez mais que outras, é um evento feito especificamente para o público local. Por isso que a gente pensou em expandir o projeto no tempo e no espaço. Queríamos, desde o começo, que ela fosse uma exposição concebida e feita para o público daqui, de São Paulo e do Brasil (mesmo antes de todas as mudanças que a pandemia trouxe e que, de certa forma, amplificaram essa visão).
[JCV] Sim, eu estive com a Cecília e com o Massimiliano Gioni, que é o marido dela e também é curador. A gente teve uma boa conversa. Aliás, tivemos várias. Das quais, inclusive, surgiram coisas para a Bienal de Veneza. E sim, acho relevante que curadores internacionais visitem a Bienal no Brasil. Mas também acho importante lembrar que a Bienal de São Paulo e a 34a edição, talvez mais que outras, é um evento feito especificamente para o público local. Por isso que a gente pensou em expandir o projeto no tempo e no espaço. Queríamos, desde o começo, que ela fosse uma exposição concebida e feita para o público daqui, de São Paulo e do Brasil (mesmo antes de todas as mudanças que a pandemia trouxe e que, de certa forma, amplificaram essa visão).

Venice Biennale 2022, Visual Identity developed by Formafantasma
“Hoje, estou muito mais interessado em processos, em relações que se constroem ao longo do desenvolvimento de uma exposição, ao invés do resultado final. E com o Jonathas não está sendo diferente. A gente tem um processo muito intenso de trocas”.
[K] Não é a primeira vez que você representa o Brasil em Veneza (Crivelli foi curador do pavilhão brasileiro na 52ª edição da Bienal de Veneza em 2007). E, de lá para cá, o país - especialmente enquanto unidade política, mudou muito. Como suas perspectivas curatoriais se transformaram neste meio tempo?
[JCV] Eu diria que as minhas perspectivas curatoriais vão se transformando sempre. Sem dúvidas, nestes 15 anos, desde a primeira vez que fiz a curadoria de um pavilhão brasileiro em Veneza, muitas coisas mudaram. Hoje, estou muito mais interessado em processos, em relações que se constroem ao longo do desenvolvimento de uma exposição, ao invés do resultado final. E, com o Jonathas, não está sendo diferente. A gente tem um processo muito intenso de trocas e de construções conjuntas para este pavilhão - que vai ser muito diferente do que foi com [os artistas] José Damasceno, Angela Detanico e Rafael Lain, há quinze anos.
[JCV] Eu diria que as minhas perspectivas curatoriais vão se transformando sempre. Sem dúvidas, nestes 15 anos, desde a primeira vez que fiz a curadoria de um pavilhão brasileiro em Veneza, muitas coisas mudaram. Hoje, estou muito mais interessado em processos, em relações que se constroem ao longo do desenvolvimento de uma exposição, ao invés do resultado final. E, com o Jonathas, não está sendo diferente. A gente tem um processo muito intenso de trocas e de construções conjuntas para este pavilhão - que vai ser muito diferente do que foi com [os artistas] José Damasceno, Angela Detanico e Rafael Lain, há quinze anos.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
“Acho que os trabalhos dele se colocam de uma maneira muito clara em relação ao modo como o Brasil vem se transformando. Este foi o aspecto da obra que mais me fez pensar que ele poderia ser um excelente representante do país neste contexto”.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
[K] Quais as características ou critérios tiveram mais peso durante o processo de avaliação e escolha do artista para esta edição da Bienal de Veneza?
[JCV] Acompanho o trabalho do Jonathas há muito tempo. A gente tem uma troca bastante frequente. Obviamente, não tanto quanto agora, nestes últimos meses. Mas é uma produção que responde muito bem ao momento que a gente vive. E, não só agora, mas já nos últimos 10 anos e de maneira muito livre. Acho que os trabalhos dele se colocam de uma maneira muito clara em relação ao modo como o Brasil vem se transformando. Este foi o aspecto da obra que mais me fez pensar que ele poderia ser um excelente representante do país neste contexto. A própria questão de como representar o Brasil hoje em um evento internacional, é altamente complexa. Acho que a produção dele contém uma complexidade que ajuda a responder esta pergunta. Talvez, não fechando com uma resposta unívoca, mas abrindo-a ainda mais. Questões sobre o que é o país hoje, o que são os brasileiros, são todas perguntas que o trabalho do Jonathas vem fazendo há muitos anos.
“Não são uma luta e violência abstratas, mas a maneira como elas se manifestam nesse corpo imaginário de uma pessoa brasileira”
[K] Anteriormente, você já havia trabalhado com Jonathas de Andrade no contexto italiano, com o projeto “Navalha na carne” (mostra coletiva realizada em Milão em 2018). A exposição refletia sobre diferentes noções de conflito no Brasil: lutas e violências diversas. Essas questões ecoam no novo trabalho que o artista está preparando para Veneza?
[JCV] Sim, são questões que estão presentes na proposta do Jonathas para o pavilhão este ano. Mas [os conceitos] de "luta" e “violência” entram de uma maneira muito mediada pelo corpo, que é outro elemento constante no trabalho do artista. Então, não são uma luta e violência abstratas, mas a maneira como elas se manifestam nesse corpo imaginário de uma pessoa brasileira, hoje em dia, no contexto em que a gente vive.
[JCV] Sim, são questões que estão presentes na proposta do Jonathas para o pavilhão este ano. Mas [os conceitos] de "luta" e “violência” entram de uma maneira muito mediada pelo corpo, que é outro elemento constante no trabalho do artista. Então, não são uma luta e violência abstratas, mas a maneira como elas se manifestam nesse corpo imaginário de uma pessoa brasileira, hoje em dia, no contexto em que a gente vive.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
[K] Você enxerga este projeto como uma continuidade e ampliação da pesquisa que você e Jonathas vêm empreendendo na arte contemporânea no Brasil ou trata-se de um trabalho mais disruptivo / inusitado?
[JCV] Eu diria que há uma continuidade em relação a outras exposições que fiz. Mas, sem dúvidas, é um trabalho instalativo muito único na minha trajetória como curador e na própria trajetória do Jonathas. Nós dois estamos nos arriscando numa exposição bastante ousada. Acho que é isso que o momento demanda.
“Estamos em um momento histórico [...]. A decisão do curador e do artista russos em se retirar do evento é bastante compreensível. O Brasil também vive momentos de tensão e de ruptura do tecido social. Mas ainda, tudo acontece dentro de uma legalidade que permite que haja vozes discordantes”.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
[K] A Bienal de Veneza foi adiada em um ano devido à pandemia. Agora, o evento abrirá em meio à guerra que a Rússia impôs à Ucrânia. Inclusive, os artistas e o curador do pavilhão russo cancelaram suas participações em protesto contra o confronto. De que maneiras o contexto social e a proximidade com a guerra podem influenciar a recepção dos projetos apresentados nos pavilhões? E como você enxerga a decisão da equipe da Rússia de se retirar do evento?
[JCV] Como disse antes, estamos em um momento histórico em que, representar um país, é um gesto muito complexo. Nesse sentido, acho que a decisão do curador e do artista russos em se retirar do evento é bastante compreensível. O Brasil também vive momentos de tensão e de ruptura do tecido social. Mas ainda, tudo acontece dentro da legalidade de uma institucionalidade que permite que haja vozes discordantes e maneiras distintas de se ver o país e o mundo. Então, o contexto em que essa Bienal se dá, tanto no Brasil, quanto em outros lugares (e a gente pensa, obviamente, na Ucrânia em primeiro lugar), faz com que as questões que estão apresentadas na exposição como um todo e no pavilhão brasileiro, do qual posso falar mais especificamente, reverberem de uma maneira ainda mais forte do que fariam em outros momentos. Não sei qual era o projeto que estava sendo pensado para o pavilhão russo e não sei qual é, em detalhes, a exposição geral da Cecília Alemani. Mas sem dúvidas, o pavilhão brasileiro, em particular, foi pensado, a partir do contexto do Brasil nos últimos anos. Então, ele reflete de um modo muito direto e, ao mesmo tempo, muito aberto e poético essa sensação de corpo, que sentimos fisicamente no dia-a-dia por viver neste contexto. Portanto, é uma instalação muito ligada ao cotidiano que estamos vivendo, apesar de nenhuma das obras falar disso de uma maneira literal.
“Vários lugares do Brasil sempre incluem a menção à partes do corpo em suas expressões [populares]. Então, através delas, se cria uma maneira de olhar para este hipotético corpo brasileiro”.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
[K] Existe algo sobre a instalação de Andrade que você já possa adiantar?
[JCV] Já adiantei em relação a essa ênfase no corpo. Outro aspecto fundamental é que se trata de uma instalação em várias mídias, porque há esculturas, vídeos e fotografias. Outro eixo que a caracteriza é a atenção para expressões populares. Isso também tem muito a ver com trabalhos anteriores do Jonathas, tanto na atenção para o popular, quanto na análise sempre muito precisa e, ao mesmo tempo, emotiva e empática da linguagem popular. E, digo isso, em relação a vários lugares do Brasil que sempre incluem a menção à partes do corpo em suas expressões. Então, através delas, se cria uma maneira de olhar para este hipotético corpo brasileiro, que está vivendo neste momento, neste país.

Jonathas de Andrade. "Com o coração saindo pela boca". Instalação. Pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza, 2022 © Ding Musa / Fundação Bienal de São Paulo / Reprodução Folha de S. Paulo
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